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Alice no País das Maravilhas

Os livros do autor conhecido como Lewis Carroll não costumam cair no gosto popular porque não são fáceis de ler e
tampouco de serem entendidos, embora apresentem o fascínio de um mundo novo e profundamente questionador. Originalmente um matemático que tinha gosto por temas da infância, Carroll escreveu os livros de Alice, de acordo com o que se conta, porque sua amiga -- uma menina de 10 anos chamada Alice Liddell -- gostara da história que ele, então com 30 anos, havia começado a lhe contar, e lhe pedira então que a pusesse no papel. A história fantástica da menina que cai num buraco de seu jardim e vai parar num poço inimaginável, onde os seres mais incríveis têm vida, organizam-se, obedecem, governam e julgam atravessou as décadas sem que se amenizasse a qualidade das charadas e das lógicas matemáticas ali escondidas e tampouco deixasse para trás toda a polêmica que gerou. Basta prestar atenção, atualmente, no frisson que a mais nova adaptação da história, trazida à grande tela pelas mãos de Tim Burton e pela atuação de Johnny Depp, está causando -- e o filme sequer foi lançado.

Se há algo de muito interessante a destacar em Alice no País das Maravilhas e Alice no País do Espelho, originalmente publicados em 1865 e 1871 respectivamente, é que este elemento especial encontra-se não no enredo caótico , mas nas personagens e na atmosfera que o caos cria. O narrador apresenta os sonhos de uma menina que transita pelo mundo do fantástico perseguindo um coelho com jaqueta e relógio, um Chapeleiro Maluco, um Gato Careteiro, como traduziu Monteiro Lobato neste volume apresentado na coleção Clássicos da Literatura Juvenil, ou todo um baralho personificado, em que a Rainha de Copas é a matriarca que manda degolar a todos sem motivo realmente fundamentado. Ou, no segundo livro, novamente trata-se aparentemente de um sonho em que a menina Alice entra no espelho e vive os episódios "ao contrário", no qual uma personagem se desmancha no ar e um ambiente transforma-se em outro, caoticamente, como geralmente ocorre nos sonhos que temos e que não seguem um roteiro cinematográfico clássico e muito bem ordenado.

Para entender as motivações de Lewis Carroll (cujo nome real era Charles Lutwidge Dodgson) é preciso entender de que época e de que lugar ele é produto. Lewis é filho da segunda revolução industrial, época marcada pelo expansionismo inglês, pela consolidação da burguesia e do capitalismo elevado ao estágio seguinte -- o imperialismo norte-americano --, dentro de um governo paradoxal, em que se expandia ao mesmo tempo em que se subjugava outras nações, nos continentes africano e asiático, ao poderio militar, político e econômico inglês. Embora muitos considerem o governo da Rainha Vitória o primeiro voltado a questões socialistas, não deixava nunca de se tratar da sustentação de uma base econômica voltada ao lucro e segundo a qual a política era moldada. Ao mesmo tempo em que os sindicatos eram suficientemente fortes para brigarem politicamente por melhores condições de trabalho, na Inglaterra, milhares de trabalhadores morriam na França, na Comuna de Paris, e outros tantos milhares eram presos. Fervilhava, na velocidade da máquina movida a vapor, o caldo do modelo de civilização e de trabalho como conhecemos no século XX, bem como o sistema judiciário, além dos já mencionados econômico e político. Nesse cenário, aqueles que eram contra a situação eram rapidamente presos, julgados, condenados e calados.

Por outro lado, havia uma onda mercadológica e política que levantava a poeira do status da criança e da mulher na sociedade britânica, já que os homens estavam fora cumprindo o dever de expandir o alcance dos braços reais sobre outras terras. Assim, questões de ordem econômica e tecnicista, como a necessidade de ensinar as crianças a ler para que pudessem seguir instruções e se transformassem nas peças reificadas que apertariam os parafusos da grande máquina, transformavam-se em "genuínas" preocupações filantrópicas de igrejas, sociedades de senhoras, sanitaristas e higienistas, editores de revistas para o público infantil e juvenil e, na esteira do movimento, representantes que defendiam no Parlamento o novo status da criança e da infância como um modo moral de reconhecer a sua importância para a formação da sociedade britânica. Do mesmo modo,a mulher passava a ser o sustentáculo do núcleo familiar, responsável por garantir que a família não se desestruturasse com a falta do marido e dos jovens em casa, e preparasse a nova geração para um grau elevado de organização social.

Muitos outros eventos de expansão, consolidação de governo, regime político e social ocorreram durante esse período e em decorrência dele, mas o resumo que mencionei já basta para que o leitor entenda muito bem que as obras de Carroll estão longe de ser puro nonsense. À parte todo o moralismo e os questionamentos de por quê uma menina de 7 anos consumiria alucinógenos como líquidos suspeitos, chás e o próprio cogumelo em pedaços, e por que ficaria sozinha num lugar estranho e com um homem, como é o caso do Chapeleiro ou de Humpty Dumpty, ou ainda do cavaleiro (Carroll também foi conhecido por se interessar pela fotografia e pelo desenho do corpo da criança, em particular de meninas), as personagens trazem questionamentos muito mais interessantes ao leitor, como o de lógica, com raciocínios que desafiam a menina a diferenciar sofismas de lógica válida. Assim ocorre no episódio em que ela conversa com a lebre, o rato e o chapeleiro. Ou, ainda, quando uma ovelha negra na cor (e na intenção de subverter seu valor consagradamente negativo) lhe põe à mostra o argumento óbvio de que nem sempre se há de pedir permissão por puro código social, pois quando se detém o poder de fato sobre alguma ação, basta-lhe valorizar-se, assumir o papel que este poder lhe confere, inverter a mão desse código social e realizar a ação sem pedir permissão. Isso é o que o leitor encontra quando a ovelha lhe dá a resposta ao pedido de parar o barco em que estavam: "Como posso parar o barco se é você que está remando? Se você pára de remar, o barco pára também", ao que o narrador completa "Vendo que era assim mesmo, Alice parou de remar e o barco seguiu a correnteza [...]" (CARROLL, 1871; 1972: 131). Ou, por outro lado, em se pensando no contexto político e econômico da época, poderia ser justamente a ironia da situação, isto é, não é só porque alguém detém o poder que necessita usá-lo.

No entanto, nem sempre tão enigmáticos são os questionamentos a que o narrador dá voz através das personagens. Com relação ao sistema judiciário, pensa Alice durante um inquérito para apurar quem havia comido os bolos da Rainha de Copas: "'Estou satisfeita de ver como é que se faz no júri', pensou consigo. 'Nos jornais muitas vezes li nas notícias dos julgamentos: 'Houve por parte da assistência uma tentativa de aplauso, que foi abafada pelos oficiais de justiça.' Mas só agora aprendi como é que os oficiais de justiça abafam os aplausos dos jurados'" (CARROLL, 1871; 1972: 81). A menina Alice referia-se a porquinhos-da-Índia que por aplaudirem a acusação eram metidos em sacos pelos meirinhos, que se lhes sentavam em cima para impedir barulho e fuga, enquanto o rei e a rainha realizavam desmandos e executavam ordens disparatadas.

Se não são obras fáceis de serem seguidas, Alice no País das Maravilhas e Alice no País do Espelho valem a sua leitura pela fantasia de se deixar levar pelo caos, pela atração que suas charadas ainda exercem sobre nós e por toda a infinidade de provocações que este labirinto literário mantém vivas e atraentes para nós, leitores do século XXI.


Fonte de informações sobre o autor: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lewis_Carroll

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